No belíssimo livro Ensaios sobre Fotografia, Susan Sontag assinala o aspecto central do fotográfico: participar da mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade das pessoas e das coisas, testemunhar a passagem inexorável do tempo. O trabalho de Piti Tomé se constitui também ao redor do fotográfico, utilizando-se da fotografia em um campo expandido, operando torções e experimentações com a imagem.
A dimensão da apropriação de fotos e imagens antigas traz camadas novas ao trabalho, um pathosenigmático que sustenta a proposta de Walter Benjamin de fazer do aparelho técnico de nosso tempo um objeto das inervações humanas. Em sua pesquisa, a artista aborda a relação da fotografia com a formação da identidade, trazendo para o centro da cena a dimensão do rosto que comparece em diversos momentos como pura alteridade.
Foi Emanuel Lévinas quem forjou teoricamente a ideia de que o “outro” se manifesta no rosto e perpassa de alguma forma, em sua essência plástica, um excedente, qual seja, a dimensão do face-a-face. No trabalho de Piti Tomé, a oscilação entre memória e esquecimento se deixa entrever pelo rosto e também pelas imagens opacas que derivam daí: imensas e poéticas zonas de vazio em imagens capturadas num corte da realidade, evocando uma abissalidade onde estaria o sujeito, assim como Edward Hopper que, pela densidade psicológica de seus quadros, transmite o cristal da solidão.
Walter Benjamin relembra que o retrato era o principal tema das fotografias, e afirma que o rosto humano foi a última trincheira do valor de culto. Na expressão fugaz dos rostos retratados nas antigas fotos, o filósofo alemão flagra o último aceno da aura. Também para Benjamin, Eugene Atget radicalizou esse processo com suas fotografias de ruas vazias de Paris, feitas em 1900, por ele designadas como autos da história.
Nesta exposição individual, Piti Tomé traz séries de trabalhos inéditos que abordam também a dimensão do vazio e a solidão na contemporaneidade, com fotografias feitas a partir de satélites, printscreens, junkmails e propagandas. Num uso talismânico das imagens, a artista explora formas alternativas de fotografar, de pesquisar a imagem e o desenrolar da própria história da fotografia.
Ao apropriar-se de fotografias e imagens, Piti Tomé reinventa o mundo e cria uma nova cartografia explorando eixos estruturais do sujeito e de sua relação com o tempo, extraindo pulsação onde o que havia era um aspecto mortuário das imagens. Ela introduz um aspecto novo na contemplação de nossos escombros: suas imagens ensinam a olhar face a face para o abismo sem ser por ele destruído.
Através de narrativas porosas ao mistério, a artista apresenta o sublime como uma pungente revelação: não há como separar o belo do terrível. Resta-nos reescrever o lugar da estranheza e prosseguir em íntimo diálogo com ela, deixando entrever na relação com a imagem e com a linguagem o estranhamente familiar, o familiarmente estranho, o sinistro que vem a lume e joga seu clarão na obscuridade da existência, de tal forma que nossos sentidos possam ser atingidos por uma “inquietante estranheza”.
A Câmara Clara, livro absolutamente transtornante de Barthes, é sobre fotografia e, também, sobre sua relação com a mãe e seus últimos dias de vida. Impactado pela mesma temática abordada por Piti Tomé – a construção da identidade, os laços fundantes ou familiares e a efemeridade – Barthes vivencia uma espécie de êxtase fotográfico com a Fotografia do Jardim de Inverno, em que sua mãe aparece quando tinha cinco anos de idade. A partir da apropriação dessa imagem, ele vive uma experiência de fé, amor e loucura e se dedica obstinado à palavra que se debruça no abismo-parapeito de uma fotografia, no rastro extraordinário do silêncio que vive entre a imagem e a palavra.
A série dating spam de Piti Tomé refaz essa relação movediça entre imagem e palavra através da junção de frases de e-mails spam recebidos pela artista e retratos de mulheres de diversas épocas. As fotografias retratam mulheres solitárias, suas faces transmitem a gravidade de uma relação com o “outro” travada na neblina da solidão. O conteúdo escrito nos versos das fotografias traz o rastro de um desejo endereçado a esse outro que não existe, mas que insiste.
Os e-mails – conhecidos como dating spam – são marcas de algo que se estabelece a partir de uma relação virtual, índice da solidão feminina e do lugar da mulher no discurso e na partilha dos sexos. A artista faz uma extração precisa do invisível da solidão naquilo que é efetivamente visível: nas imagens fotográficas, nas mensagens que criam um espaço aterrador apontando para uma descoincidência brutal e para um desencontro perpétuo, que reconfiguram a própria ideia de fotográfico, buscando aquilo que lhe concede uma identidade singular que tremula dentro e fora da imagem.
Assim também na série lugares remotos, constituída por fotografias feitas a partir de printscreens de imagens de satélites apontados para coordenadas dos lugares mais remotos do mundo numa espécie de “ato fotográfico”, à maneira que Philippe Dubois retrata em seu ensaio de mesmo nome, em que evoca a ampliação do fotográfico: do ato de captura até à recepção, como uma maneira radical de ler o mundo, citando o Santo Sudário como exemplo inaugural deste tipo de representação – um tecido que carregaria em si os vestígios da experiência naquilo que ela porta de visível e invisível –, produção de uma fotografia pelos restos, pelo real, pelo inassimilável que se deixa entrever nos rastros.
Piti Tomé estabelece uma relação visual entre a solidão e as paisagens desérticas. No trabalho feito com printscreens do vulcão Shiveluch, pode-se ler uma carta que revela uma espécie de arrebatamento, uma emanação luminosa, numa narrativa que perpassa os afetos, a solidão, o vazio das relações e os desencontros estruturais cravados pelas relações inaugurais de nossa existência. A carta – a fotografia do jardim de inverno, em que Barthes reencontra algo de sua mãe porque ela (a fotografia), é a emanação de um rastro – é um traço que provoca um efeito de mancha, um borrão que revira o tempo restituindo o que foi abolido pela distância. Uma foto e uma carta que reinventam a relação com o outro, testemunhos de fé que atestam uma ressurreição, como aquela que Dubois compara ao Santo Sudário. Trata-se, portanto, de algo inaugural, que confere vitalidade às pequenas mortes: “Nesse deserto lúgubre, me surge, de repente, tal foto; ela me anima e eu a animo”.
No trabalho de Piti Tomé, a carta endereça a questão novamente para uma aposta no selvagem que habita tanto a palavra quanto a imagem, subvertendo o tempo e o espaço e criando uma zona pulsional para além do capturável. Se a fotografia reconstrói seus lugares e personagens com base em códigos estabelecidos por alguma tradição, Piti Tomé revira o fotográfico por dentro, estilhaçando categorias estéticas e epistemológicas, escrevendo a imagem, o incomensurável, encontrando um destino para essa carta-vulcão. Não obstante, podemos lembrar que há sempre em seu trabalho uma história singular, a possibilidade de inscrição do movimento na imagem sob a forma de um “borrão” que é a radicalidade de um sujeito, a sua marca.
Dubois diz que, quando a fotografia se reconhece como discurso, ela aprende também a explorar a relação entre imagens. E é justamente nessa virada que se situa o trabalho desta exposição individual, como na série feita a partir de propagandas de revistas antigas modificadas pela artista e que revelam o lugar da mulher na história das narrativas, recriando criticamente um território em que o doméstico insurge como indomesticável.
Ao pensar nas questões de apropriação e autoria, Piti Tomé evoca o feminino através da insubmissão. No campo ampliado das imagens e das palavras, ela reescreve a expressão de uma intimidade que se encerra em uma subjetividade, representando a figuração da solidão. Uma solidão que ousa pronunciar seu nome, não mais na vulnerabilidade dos processos de identificação, mas no reconhecimento agudo de que o outro é sempre vacilação. A solidão que é reconfigurada pelo trabalho artístico aqui proposto não é mais a simples privação, mas além de uma hipersensibilidade à ausente presença do outro, a solidão mede – tal qual uma sonda – a intensidade do desejo ardente que não responde ao chamado de maneira simétrica. E é onde o outro responde enigmaticamente que podemos nos confrontar com a dimensão da negatividade. A solidão é um sentimento da presença de ausência. Ao tocar o vazio com as mãos firmes, sabendo que algo sempre irá escapar, é possível que haja um deslocamento da demanda para o desejo: esse vulcão que assinala sua presença convocando uma solidão que possa ser ética.
As estratégias e processos para tocar o inapreensível das reconfigurações das relações são revelados na exposição de um iphone e uma conversa entre a artista e siri, um aplicativo de conversa que, incapaz de tocar o ponto fulcral das relações humanas, encarna um ideal que achata e reduz o pulsional. Piti Tomé, no entanto, insere o real reintroduzindo a complexidade que envolve os vínculos entre os sujeitos que, em certo sentido, sempre fracassam. A solidão como ética revela uma posição desejante ao invés de demandante e não desconsidera o mal-estar constituinte do sujeito na relação com a alteridade.
As imagens – muito além das imagens – que a artista apresenta, apoderam-se de nós como miragens e fantasmas, forçam-nos a reprogramar o olhar por inteiro ao inserir elementos misteriosos e opacos que num jogo sutil e vigoroso nos leva a reescrever o mundo como um lugar de tremor, aposta, balbucio e fúria, que, na escrita aguda de Maria Gabriela Llansol, “é a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”.
Bianca Dias