Que nossos filhos nunca percam o amor à vida

“Mamãe vi um filhote de furacão, mas tão filhotinho ainda, tão pequeno ainda, que só fazia mesmo era rodar bem de leve umas três folhinhas na esquina...”
Clarice Lispector, Futuro de uma delicadeza

“Mamãe, mamãe, mamãe, mamãe”, insiste a criança enfaticamente. Pedido de socorro diante do desamparo do mundo ou urgente clamor por atenção? A presente exposição de Piti Tomé, cujo título é homônimo ao da recente série de esculturas em cerâmica, aborda a maternagem e suas dimensões somática, social e psicológica. Evoca a experiência vivida na intensidade do corpo e da subjetividade, na demanda de outro ser vivo por cuidado, bem como nas estruturas sociais que impõem pressões e expectativas às mulheres. Esta exibição tangencia a força e a fragilidade da vida e também aponta a dimensão do trabalho reprodutivo, ao fazer refletir sobre as dores e as delícias da maternidade, suas perspectivas pessoais e políticas.

A série de esculturas “mamãe, mamãe, mamãe, mamãe”, produzida em cerâmica e pedras, traz seios de diferentes formatos, tamanhos e cores: seio-vácuo, seio-fálico, seio-smile, seio-pedra, seio-olho, seio-totem etc. Em estreita relação com a Psicanálise, Piti Tomé aciona Melanie Klein e sua abordagem do seio materno como sendo o primeiro objeto de desejo do bebê, primeiro órgão com o qual se estabelece um vínculo muito forte. Sua apreensão de seio bom, como sendo aquele que alimenta a criança, e seio mau, como o que se ausenta e provoca frustração, é cara à artista, que se tornou mãe recentemente. A partir de uma perspectiva feminista da história da arte, que traçamos neste texto, a série alude “Mamãe” de Crisitina Salgado, escultura de um seio materno avantajado e poderoso, e a “Maman”, icônica escultura de Louise Bourgeois de uma aranha com oito patas e o ventre carregado de ovos.

Nesta genealogia feminista que propomos, a recente série de Tomé intitulada “Mamilos” ecoa localmente “As conchas-vagina (mostruário)” e “Corpo-casa [Mamás]”, de Brígida Baltar e, internacionalmente, as peças sem título que sugerem vulvas da estadunidense Hannah Wilke. Os bicos produzidos com argila de diferentes cores apresentam morfologias e sugerem sabores heterogêneos, apontando leituras corporais distintas das genéricas imagens, científicas ou didáticas, sobre amamentação. Localizados nas partes centrais dos seios, os mamilos estão ligados às glândulas mamárias e, portanto, à produção de leite.

No lugar do xadrez de Marcel Duchamp, o “Jogo de damas; perdi” de Piti Tomé atualiza o jogo na/ da arte e aponta o humor e a ironia como dados de seus trabalhos, enquanto “Cambrianinhos” traz a perspectiva hídrica para (re)pensar a origem da vida. Produzida com seu filho Bernardo Tomé, a escultura em cerâmica aciona temporalidades variadas. Se, em trabalhos anteriores, a artista lidava com histórias individuais e coletivas, biográficas e ficcionais, particulares e anônimas, próprias e inventadas, aqui lida com a escala de tempo geológico. O Cambriano marca um ponto importante na história da vida no planeta Terra, pois é o período de tempo em que a maioria dos grupos principais de animais apareceram no registro fóssil.

A atual exposição de Piti Tomé abre possibilidades outras no trabalho da artista, que vem abordando a problemática fotográfica e da memória ao longo de sua trajetória. Se nas mostras anteriores as memórias social e afetiva, da paisagem e do espaço geográfico foram abordadas, aqui, o corpo é o foco, pontuando o deslocamento do social para o pessoal, do exterior para o interior, que reitera o lema feminista “o pessoal é político”.

A fotografia continua presente através da série “M(other)”, produzida a partir de aplicativo de inteligência artificial. A artista partiu do desenho em grafite e carvão que retrata um seio-montanha, espécie de corpo-paisagem que liga a mulher à terra, origem e destino da vida, mas que também extrapola o corpo, inaugurando alteridade no e do espaço. A partir do desenho, Piti utilizou ferramentas de AI e manipulação digital para produzir as imagens aqui apresentadas. A apropriação, recurso tão caro à artista, aparece em novo desdobramento, congregando imagens a um só tempo oníricas e telúricas.

Nesta direção, há a ampliação de seu vocabulário fotográfico, através da exploração de outros suportes. Se a linguagem plástica de Tomé já incluía páginas de livros, aqui elas se somam à aquarela: a série “Pequenas virtudes (a partir de Natalia Ginzburg)” une aquarelas da artista com trechos do livro As Pequenas Virtudes, da escritora italiana Natalia Ginzburg. As junções de trechos de textos ensaísticos e memorialísticos da autora com imagens de peito e de peixe morto aproximam maternagem e labor, e apontam a negociação entre os ofícios maternal e artístico. As aquarelas também se ligam ao vídeo “Ikura”, que retrata uma desova de salmão com fim trágico. Nadando rio acima contra a corrente, as fêmeas de salmão lutam para desovar. Depois de tal operação, muitas se desintegram. Os indícios de sua existência (olhos embaçados e esbugalhados, escamas caídas e falta de movimento) abordam a geração da vida enquanto experiência-limite.

Presentes na exposição estão também dois trabalhos de 2023: “No princípio é a mãe (a partir de Cristopher Bollas)” e “Meu ofício (a partir de Natalia Ginzburg)”, ambos impressão de frases sobre tecido. Em seu texto “As relações humanas” do referido livro, Ginzburg nos diz: “amamos nossos filhos de um modo tão doloroso, tão assustado, que temos a impressão de nunca ter tido outro próximo, de nunca mais poder ter um. Ainda estamos pouco habituados à presença de nossos filhos no mundo: ainda estamos estupefatos e transtornados por seu aparecimento em nossa vida” (GINZBURG, 2019, p. 75).

A escultura “Peito bipartido” lida com cisões, como se a mulher estivesse sempre dividida entre as suas funções de “mãe que dá de mamar” (fornecendo alimento e possibilitando a vida) e a aquela que existe para além da maternagem. Nesta abordagem, a escultura de peito de Piti Tomé ecoa as rachaduras e fissuras físicas e emocionais das mães e parece aludir “Dar de si”, de Roberta Barros, performance na qual a artista ordenha seu próprio leite em público.

Tangenciando temas ligados à origem e à manutenção da vida, as obras desta exposição lidam com o acúmulo e a repetição da diferença, procedimentos que Piti Tomé já vinha empreendendo previamente em seus trabalhos. Nas palavras da artista, a “multiplicidade de encontros, desencontros, expectativas e frustrações” apontam para as possibilidades infinitas de aproximação entre mãe e filho, mulher e arte, artista e seu fazer. Aritmética imperfeita que por vezes multiplica, outras subtrai, ora divide, ora soma, manifesta o embate com os materiais, conceitos e experiências que originam a presente mostra. Siderados ficamos. Afinal, “tudo certo como dois e dois são cinco”...

Fernanda Pequeno, julho de 2023.