Léxico Familiar* 

As figuras de linguagem são distorções daquilo que falamos, empregadas para comunicar o que, de fato, queremos dizer, afastando o discurso de uma literalidade objetiva e aproximando-o de uma dimensão mais alegórica, quiçá poética. É evidente que esses recursos são frequentemente empregados na literatura, e que parte deles pontua de modo natural a comunicação oral. Mas é interessante pensar como essas estratégias da língua são lançadas por artistas visuais – afinal, talvez seja na arte que o sentido figurado do discurso tenha sua corporificação mais eficiente. Como diria Paulo Bruscky, a arte é esse comunicado.

Certas figuras tem aplicações muito específicas, como as onomatopeias, típicas das histórias em quadrinhos. São tentativas de imitar pela escrita um som ou ruído, palavras que ganham sentido na vocalização de sua pronúncia. É impossível ler “glub, glub”, por exemplo, sem imediatamente ouvir o barulho de um líquido descendo pela garganta; é uma experiência de sinestesia, memória que qualquer de nós consegue acessar. O título da mostra, assim, é o primeiro de muitos jogos entre significado, expressão e imagem operados por Piti Tomé. Entre fotografias, esculturas, instalações, objetos e colagens impregnadas de hipérboles, trocadilhos, metonímias, alegorias e metáforas, a relação entre palavra e imagem que as figuras de linguagem suscitam é fundamental aos trabalhos da artista.

Alguns dos objetos da mostra mais capazes de evocar a onomatopeia “glub, glub” são seios de cerâmica. Um corpo inteiro está ali presente, sintetizado naquele fragmento, como uma sinédoque. A fragmentação, aliás, é um recurso reiterado na pesquisa de Tomé, desde o início de sua produção, quando se apropriava de frações e pedaços de vidas alheias, de imagens conhecidas e desconhecidas, de excertos de livros e de revistas (especialmente, as propagandas publicitárias), recombinando essas partículas – como sílabas de diferentes palavras – para criar neologismos visuais.

E o que aquela pequena parte do corpo reproduzida em diferentes escalas pode significar? Há nesse símbolo-síntese um paradoxo: tanto “Peito bola”, como “Peito bipartido”, e o próprio totem “Glub, glub” (erguido sobre moldes de latas de fórmula infantil), simultaneamente personificam e universalizam a experiência do seio (e, eventualmente, do leite) em suas várias funções – biológica, erótica, afetiva, social, estética, de gênero, econômica, etc. Cada um de nós se relaciona de modo específico com esses objetos, ao mesmo tempo em que eles conjuram uma vivência atávica comum a todos. Ademais, há uma dimensão biográfica nesses trabalhos (como em tantos outros), acentuada pela experiência recente da maternidade, tanto por parte da artista como desta que vos escreve. Nesse sentido, poderíamos também lembrar de Melanie Klein e seus conceitos de “objeto parcial” e de “seio bom, seio mau”, refletidos especialmente na escultura cindida – este enfoque, porém, fica a cargo dos psicanalistas.

A série “Peito pedra” oferece a figura da mama por meio de mamilos feitos de cerâmica crua ou esmaltada, em diferentes tons, diâmetros e estados de rigidez, posicionados sobre pedras em estado natural. Assim como nos antigos retratos usurpados, desmembrados e justapostos em páginas de romances e livros de anatomia (obras realizadas entre 2014 e 2016), as pedras-peitos de Tomé são criadas a partir de gestos de apropriação, deslocamento e acúmulo – procedimentos recorrentes em sua prática. É curioso notar, aliás, que esses procedimentos não se esgotam com a produção de algumas poucas peças. É preciso operar na ordem do excesso, pois é na insistência da repetição desses gestos que algo novo emerge.

Os seios ainda aparecem de modo sugestivo na “Série: M(other)”, na qual um pico de montanha se confunde com um peito. Experimentando com uma ferramenta de inteligência artificial, a artista partiu de uma imagem existente e, com comandos específicos, permitiu que a IA interferisse na figura montanhosa, borrando seus contornos e adicionando camadas de informação. O resultado é um conjunto de três diferentes versões da mesma cena, sutilmente alteradas por meio do uso da ferramenta. O título do trabalho decorre de um calembur da língua

1 Título emprestado do livro homônimo de Natalia Ginzburg, autora que também inspirou o nome da obra “Pequenas virtudes”, de 2023.

inglesa – mãe e outro –, desvelando mais uma vez a ambiguidade da figura materna, tão conhecida e tão estrangeira.

Os jogos de palavras continuam exercendo papel central na mostra e ganham corpo em jogos concretos inventados por Tomé. Assim como os jogos de tabuleiro da antiguidade, não sabemos quais são as suas regras ou como manejá-los, o que os transforma em artefatos arqueológicos do presente. Em “Jogo de Damas; perdi”, a artista reflete sobre um passatempo muito popular. Apesar de ter sido criado há muitos séculos, o seu nome moderno em língua portuguesa alude a uma certa proclividade de relegar a prática dessa modalidade às mulheres, uma vez que o xadrez seria “difícil demais” para o “sexo frágil”. O tabuleiro criado por Tomé segue o padrão clássico lusófono de 64 casas alternadas, com doze peças claras e doze escuras. No entanto, um olhar mais atento revela que a base e as damas são feitas de cerâmica, sendo as peças também mamilos como os que compõem “Peito pedra”. Num acidente fortuito, mas oportuno, o tabuleiro acabou rachando, ecoando o “Peito bipartido”.

Por fim, em obras como “La mer”, o mesmo tema emerge na fusão entre o mar e a mãe, palavras que se confundem na sonoridade do título inscrito em língua francesa. O trocadilho aproxima a imensidão do mar à imensidão da maternidade, o gestar de uma vida na barriga mamífera à gestação da origem de todos os seres vivos na profundidade abismal das águas oceânicas por mais de três bilhões de anos. (Pergunte a qualquer grávida ou puérpera e ela lhe dirá que o fim da gravidez demora muito mais do que isso para chegar). As imagens em preto e branco da superfície inquieta alternam pontos de vista, ora direcionando nosso olhar ao horizonte, ora ao chão; o primeiro ângulo nos convida à deriva, enquanto o segundo ao aterramento. Novamente, é a figura do paradoxo que condensa a pesquisa de Piti Tomé: o choque entre passado, presente e futuro; a fricção entre o natural e o artificial; a tensão entre a parte e o todo; a ressonância entre o que é comum e o que é singular; e o estranhamento daquilo que é familiar em contato com a dimensão misteriosa da existência.

Julia Lima Agosto de 2024

*  Título emprestado do livro homônimo de Natalia Ginzburg, autora que também inspirou o nome da obra “Pequenas virtudes”, de 2023.