“entre uma e outra coisa todos os dias são meus”




Piti Tomé realiza trabalhos que tratam de arquivos alheios, criando analogias com a memória impressa dos alfarrábios. Ao se apropriar de páginas de livros, pequenos objetos, carcaças de animais, a artista nos conduz a ambientes e temporalidades híbridos, desarticulando passado e presente, recodificando guardados familiares, afetos e peças com predicados científicos. Assim, abrimos os livros, fuçamos as gavetas, exercemos nossa parcela de voyeurismo. O uso das imagens, dos retratos sobre as páginas, nos leva a crer que estamos diante de biografias.



A exposição "entre uma e outra coisa todos os dias são meus" procura, então, estabelecer um recorte na produção de Piti Tomé, destacando os trabalhos, onde a artista imprime, sobre páginas de livros, fotos de desconhecidos, de personagens anônimos, da vida dos infames. Configura-se, então, uma estranha ideia de família. Criam-se supostas genealogias, associando-se um retrato ao outro, atribuindo-lhes possíveis irmandades.



"O retrato não me responde, ele me fita e se contempla", afirma Carlos Drummond de Andrade. O retrato de família esconde o que foram as pessoas: “Pedro é tranquilo, João não é mais mentiroso”. Afiançados pelo poema de Drummond, também podemos perceber, no retrato, a presença da morte, lugar prenunciado pelo gesto congelado, pelo estado de suspensão do tempo, do controle do corpo, da pose que se coloca como uma alteridade de si mesma. Ao mesmo tempo, a biografia engalanada, sem sabermos das hipocrisias, das falências e riquezas. Na hora do retrato, presencia-se, como no gozo, uma pequena morte.



Por outro lado, nos trabalhos de Piti, destaca-se a presença da infância. Os personagens infantis  estimulam, aqui, a narrativa de outro tempo, justificando roupas de época como fantasias da meninice, ora mais próximos aos adultos, ora mais compostos em trajes românticos, idílicos, com enfeites florais, rendilhados, nervuras, tal qual percebemos, até hoje, na indumentária infantil.



E seguimos em busca, vivendo aquilo que se escreverá nas folhas silenciosas dos livros, nas mensagens trocadas no dia a dia, nos pequenos textos, nas conversas, nas crônicas que comumente vivemos, sem perceber. Fernando Pessoa, no poema “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia”, afirma que a tarefa de escrever uma biografia será muito simples, pois entre seu nascimento e sua morte, "entre uma e outra coisa todos os dias são meus".



João Cabral de Melo Neto nos diz que o livro é severo, pois exige que alguém o indague. E modesto, já que "só abre se alguém o abre". Neste sentido, é o oposto do quadro na parede que já está exposto.



O trabalho de Piti Tomé cumpre esta função, deixa o livro pronunciar palavras e, ao mesmo tempo, o abre, o oferece exposto à leitura. Sobre suas páginas, como sudários, os corpos que conviveram com a solidão das estantes, dos livros lacrados, com o austero e lúdico ambiente das bibliotecas. Por ali circularam as crianças, habitando, clandestinamente, como nas próprias palavras da artista, os espaços intersticiais, o intervalo das estantes, o em baixo da mesa, o atrás da porta, o avesso das cortinas, esconderijos das brincadeiras quando se tentava preencher lacunas, ocupar vazios, conviver com as coerções do mundo.



Marcelo Campos